O portal das Provas Digitais no Processo Penal
No último 7 de fevereiro, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu, no âmbito do Agravo Regimental no RHC nº 143.169/RJ, paradigmática decisão no que se refere às garantias de confiabilidade e integridade das provas digitais e à importância do estabelecimento da sua cadeia de custódia.[1] O voto condutor do acórdão, tão rico quanto didático, coube ao ministro Ribeiro Dantas, que foi acompanhado pelos ministros Joel Ilan Paciornik e Reynaldo Soares da Fonseca. Quase uma década após o julgamento do HC nº 160.662/RJ, portanto, o STJ volta ao tema da cadeia de custódia das provas digitais, oferecendo, uma vez mais, substancial contribuição ao processo penal brasileiro e, nas palavras do ministro Joel Paciornik, realizando a sua missão de criar precedentes e dar interpretação definitiva a norma de direito federal.
O caso que foi objeto do recurso é um exemplo de como uma investigação não deve ser realizada. Faz-se aqui brevíssimo resumo. A denúncia oferecida em face do paciente lastreou-se fundamentalmente em provas oriundas de computadores apreendidos em sua residência. As medidas de busca e apreensão dos computadores foram autorizadas pelo magistrado competente, que, algumas semanas depois, determinou a quebra do sigilo dos dados destes aparelhos e ordenou o encaminhamento dos objetos ao Instituto de Criminalística (IC). Convém observar que, durante a recolha e guarda inicial destes aparelhos, a documentação era bastante precária, se limitando à descrição física dos aparelhos (número de série e marca); não se sabe, até hoje, o estado em que os computadores se encontravam, a sua disposição física, o método de recolha, o recipiente e o modo como foram lacrados, as condições de sua transferência, os responsáveis que tiveram contato com os aparelhos. Não bastasse a prática nada cautelosa e inadequada, o delegado de polícia resolveu contrariar a determinação judicial e encaminhou o material sigiloso não ao IC, mas à equipe da pessoa jurídica de direito privado que teria sido lesada pelos crimes investigados, envio esse feito de maneira informal, sem qualquer documentação. Não se sabe o que, como, por quem e em qual extensão o material foi encaminhado, apenas constando a juntada do laudo emitido por aquela pessoa jurídica. Posteriormente, com base nesse laudo, o inspetor de polícia, que havia sido encarregado das interceptações telefônicas, emitiu documentos chamados laudos complementares, nos quais teria realizado a extração dos dados dos computadores, sem indicar, porém, como o fez (= metodologia empregada, cautelas adotadas, garantias estabelecidas).
Em seu lapidar voto, o ministro Ribeiro Dantas principiou com a definição da função do estabelecimento da cadeia de custódia das provas: "garantir que os vestígios deixados no mundo material por uma infração penal correspondem exatamente àqueles arrecadados pela polícia, examinados e apresentados em juízo". Prosseguiu o ministro indicando que "toda fonte de prova que constitui corpo de delito exige algum tipo de manejo próprio para garantir sua integridade" para depois afirmar que as peculiaridades das provas digitais exigem técnicas específicas que precisam ser adotadas pelo aparato sancionador a fim de "garantir objetivamente a confiabilidade das provas por ele produzidas".
O ministro deixou claro não ter a pretensão de estabelecer as regras específicas, dentre as muitas existentes, para o tratamento do tema, mas que caberia ao órgão julgador "avaliar se no caso concreto foram adotadas pela polícia cautelas suficientes". De todo modo, o voto indica já estarem bem delineados os mecanismos necessários para assegurar a integridade dos dados armazenados digitalmente, com referência à realização de cópia integral (bit a bit) do conteúdo do dispositivo, "gerando uma imagem dos dados: um arquivo que espelha e representa fielmente o conteúdo original", e à aplicação da técnica do algoritmo hash (que o ministro define como "uma espécie de impressão digital ou DNA, por assim dizer, do arquivo")[2]. Após destacar a importância dessas técnicas, que contam com expressivo consenso técnico-científico, o ministro assevera que, se manejadas corretamente, as provas digitais podem oferecer "garantias de mesmidade superiores àquelas de uma fonte corpórea [...], dada a precisão e objetividade do algoritmo de hash".
Quanto ao caso concreto, o voto confirma não haver nenhum tipo de registro documental sobre o modo de coleta e preservação dos equipamentos, a cadeia de custodiantes, as datas de contatos com a prova, a trajetória administrativa percorrida pelos aparelhos. No que diz respeito tanto ao laudo elaborado pela pessoa jurídica de direito privado quanto ao laudo elaborado, posteriormente, pela polícia, o ministro Ribeiro Dantas afirma não haver indicação de registros sobre a extração, sobre como e quais objetos foram enviados àquela, sobre a metodologia empregada. É assertivo o voto: "[e]squeçam-se imagens, hash, espelhamento: não sabemos nada sobre o que a polícia fez para obter os dados ou garantir sua integridade, porque ela não se preocupou em documentar suas ações".
Em seguida, descreve-se criticamente o que aconteceu: "[d]a forma como redigidos os laudos, polícia e Ministério Público nos pedem, na prática, que apenas confiemos na eficiência e honestidade do perito e da atuação estatal como um todo — mesmo diante desses evidentes e graves lapsos de profissionalismo — para acreditar que nenhum dado foi perdido ou alterado enquanto os computadores estiveram sob a custódia do Estado". Embora elementar para quem conhece a história do exercício do poder penal, o voto oferece lição que deve ser sempre lembrada: "no processo penal, a atividade do Estado é objeto do controle de legalidade, e não o parâmetro do controle".
Na resolução do caso, a conclusão do ministro Ribeiro Dantas é bastante simples e objetiva: a completa falta de documentação do que foi feito pela polícia inviabiliza saber o que efetivamente aconteceu no tratamento das fontes de prova. Não sendo possível responder perguntas básicas sobre como a prova foi produzida, "não há como assegurar que os elementos informáticos periciados pela polícia e pelo banco são íntegros e idênticos aos que existiam nos computadores do réu". Com base nos argumentos expostos, o voto condutor do acórdão declara inadmissíveis as provas oriundas dos computadores apreendidos pela polícia do Paciente, por falharem no teste de confiabilidade mínima, assim como as provas delas derivadas.
Ao fim, o ministro Ribeiro Dantas abre interessante tópico intitulado "resposta a possíveis objeções". Neste item, surge o tema da irretroatividade dos artigos 158-A a 158-F do CPP, introduzidos pela Lei nº 13.964/2019, considerando que a investigação objeto de análise teria ocorrido em 2017. No entendimento do ministro, embora a Lei 13.964/2019 tenha detalhado o instituto da cadeia de custódia, o seu conceito já existia antes da lei, porquanto ínsito à própria noção de corpo de delito, presente no artigo 158 do CPP e, há muito, na dogmática jurídica ocidental[3]; como reforço ao seu argumento, citou o já mencionado HC nº 160.662/RJ, julgado pela Sexta Turma do STJ em 2014. A análise da quebra da cadeia de custódia da prova, portanto, independeria dos novos dispositivos legais, que seriam até mesmo inaplicáveis ao caso, em vista do princípio tempus regit actum.
Nesse mesmo item, é enfrentada eventual contradição entre o que estava sendo decidido e o entendimento exposto pela Sexta Turma do STJ no HC nº 653.515/RJ, julgado em novembro de 2021. Naquela ocasião, entendeu-se que "as irregularidades constantes da cadeia de custódia devem ser sopesadas pelo magistrado com todos os elementos produzidos na instrução, a fim de aferir se a prova é confiável". O ministro Ribeiro Dantas aduz permanecer vigente o entendimento de que a eventual inobservância de alguma das regras dos artigos 158-A a 158-F do CPP não conduz, por si só, a inadmissibilidade da prova ou a absolvição do imputado, cabendo "ao juiz avaliar se os demais elementos dos autos são capazes de assegurar que a prova é confiável, sendo ônus da acusação apresentá-los". No caso concreto, como destaca o ministro, a conclusão pela inadmissibilidade decorre do fato de que nem a polícia nem a acusação ofereceu qualquer documento ou elemento que pudesse comprovar que o corpo de delito permaneceu inalterado quando submetido à custódia policial; não houve "simples violação de alguma regra protocolar", mas "a constatação de que'a acusação e a polícia não tiveram nenhum cuidado com a documentação de seus atos no tratamento da prova, nem apresentaram nenhuma outra prova que garantisse a integridade do corpo de delito submetido à perícia".
Em determinada passagem, confirmando a tradição garantista e humanística que marca as duas turmas criminais desta Corta e na esteira de sua densa jurisprudência sobre direito probatório e garantias fundamentais dos acusados, o ministro Ribeiro Dantas oferece lição que merece ser referida. O parágrafo inicia de maneira firme sentenciando que a prova penal é um assunto sério para em seguida afirmar de maneira irretocável: "[i]gnorar suas regras tem resultados desastrosos, como a condenação de pessoas inocentes e o possível encobrimento de comportamentos estatais ilícitos — a não ser que, ingenuamente, acreditássemos que tais eventos nunca acontecem". "Exigir do aparato investigativo e acusador a observância um padrão básico de diligência, destinado a prevenir a ocorrência de erros graves, é algo que não pode ser dispensado pelo Judiciário."
O mundo da vida digital[4], com suas peculiaridades, é uma realidade, como o é a justiça no mundo da vida digital. As provas digitais, com suas características distintivas (imaterialidade, fragilidade e volatilidade), estão inseridas nesse universo e exigem particular esforço para sua compreensão e enfrentamento. As novas tecnologias não arrefecem as preocupações típicas de um processo penal liberal e republicano, marcado pela desconfiança com o abuso do poder penal; ao revés, há boas razões para se crer que o risco de manipulação, abuso e arbitrariedade do poder penal seja muito maior que antes. Com esta decisão, a 5ª Turma do STJ não só demonstra perfeita compreensão desta realidade como insere o Brasil na vanguarda do pensamento jurídico internacional no que diz com o tema da prova digital e, como já destacado, cumpre com brilhantismo sua missão constitucional.
A defesa foi patrocinada pelos escritórios Geraldo Prado Consultoria Jurídica; Almeida Castro, Castro e Turbay Advogados e Saulo Morais Advogados.
---------------------------------------------------
[1] Ag. Rg. no RHC n.º 143.169/RJ. Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Rel.: Min. Jesuíno Rissato. Rel. para acórdão: Min. Ribeiro Dantas. Julgamento em: 7 de fevereiro de 2023. Atuaram no caso os escritórios Almeida Castro, Castro e Turbay Advogados Associados, Geraldo Prado Consultoria Jurídica, Saulo Morais Advogados e Sarmento e Castro Advogados. Atuou também, como assistente técnico da defesa, o Perito Lorenzo Parodi.
[2] Sobre estas técnicas e o conjunto de best practices nacional e internacionalmente reconhecido, ver: BADARÓ, Gustavo. A cadeia de custódia da prova digital. In: SARLET, Ingo W. et al (org.). Direito probatório. Londrina: Thoth, 2023. p. 176-177.
[3] Sobre o tema, conferir: PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2021. p. 63-87. Interessante, ademais, notar a redação do Código de Processo Penal do Piauí, que já em 1919 estabelecia em seu art. 72: “Serão sequestrados os instrumentos do crime e os objetos que constituam prova, sendo todos sellados e identificados com a assignatura do executor da diligência. Estes objectos serão guardados no logar que para isso designar a autoridade”.
[4] SUSSKIND, Jamie. Future Politics: living together in a world transformed by tech. Oxford: Oxford University Press, 2020.
Nenhum Comentário publicado ainda.
Utilize os campos abaixo para comentar a notícia acima (publicação sujeita à análise dos administradores):