A exigência de custódia em provas digitais, agora explícita

A indefinição que até então alguns órgãos de acusação alegavam sobre a exigência da adoção de procedimentos de custódia em relação a material probatório digital, está agora resolvida com a entrada em vigor da LONPC.

Indícios, evidências e provas digitais são hoje um dos tipos mais comuns de elementos probatórios que se encontram em processos penais relativos a virtualmente todos os tipos de crimes.

É cediço que a evidência digital é frágil por natureza. Ela pode ser alterada, adulterada ou destruída por manuseio ou exame impróprio (ABNT NBR ISO/IEC 27037, p. 8), ciente ou involuntário, inclusive sem deixar vestígios, convertendo-se em prova diabólica à defesa.

Mas, afinal, o que são as evidências digitais?

Pode ser feita uma listagem certamente não exaustiva dos principais tipos de evidências digitais, a exemplo de conteúdo de aparelhos celulares, computadores e pendrives, vídeos de câmeras de segurança, interceptações telefônicas, telemáticas e ambientais, arquivos obtidos de prestadores de serviços remotos (nuvens, e-mails e afins) e muitas outras.

Todas estas são evidências digitais e todas, via de regra, tem sua forma final de apresentação representada por um ou mais arquivos digitais.

Arquivos digitais são recursos de armazenamento de informações, normalmente em formato binário (ou seja, representados por conjuntos de “0” e “1” de acordo com determinada codificação), baseados em sistemas de memorização que podem ser magnéticos, eletrônicos ou, ainda, de outros tipos (antigamente, por exemplo, existiam os cartões perfurados e hoje existem sistemas de armazenamento ópticos, a exemplo dos DVDs, CDs etc.).

Portanto, na prática, os diversos tipos de arquivos (a exemplo de documentos, imagens, textos, vídeos, áudios, bancos de dados, planilhas etc.), e por consequência as evidências ou provas digitais representadas por tais arquivos, nada mais são que conjuntos de informações e dados codificados de acordo com certos padrões, que variam a depender de seus tipos. Reitera-se, são informações e dados.

O próprio termo “informática”, de uso corriqueiro, descreve um conjunto de atividades e ciências relacionadas ao tratamento de “informações” através de sistemas digitais.

A Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime), que introduziu no Código de Processo Penal os Artigos 158-A a 158-F que tratam da cadeia de custódia (seus procedimentos e indispensabilidade), mencionou de forma explícita somente o “vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes” (Art. 158-A) como o tipo de elemento ao qual aplicar as regras de custódia descritas nos mencionados novos artigos do CPP.
O vestígio, por sua vez, é definido, no mesmo artigo do CPP, como “todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração penal”, o que numa primeira e superficial análise (desconsiderando os possíveis significados da palavra “latente”), aparenta limitar a questão a vestígios físicos.

Tal situação de pouca clareza, deixava para uma interpretação analógica e extensiva (de acordo com o Art. 3º CPP) a necessidade de aplicação das regras relativas à custódia a outros tipos e categorias de elementos probatórios, inclusive a indícios, evidências e provas digitais.

Isso abria espaço para a contestação, por parte dos órgãos de acusação, da necessidade de adotar procedimentos de custódia em relação a evidências e provas digitais. Contestações e interpretações que, sobretudo em instâncias inferiores, são frequentemente acatadas pelo judiciário, apesar do posicionamento das Cortes Superiores e de muitos dos principais juristas e acadêmicos em matéria processual penal, que defendem a inadmissibilidade ou imprestabilidade, em âmbito penal, de evidências digitais não devidamente custodiadas, em função de sua facílima e indetectável adulterabilidade.

Esta situação de insegurança e falta de clareza parece, finalmente, ter sido resolvida com a aprovação e entrada em vigor, em 23 de novembro 2023, da Lei 14.735/23 (Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, ou “LONPC”) que, em seu Artigo 6º, inciso V, estabelece que compete privativamente à polícia civil “garantir a adequada coleta, a preservação e a integridade da cadeia de custódia de dados, informações e materiais que constituam insumos, indícios ou provas”, no âmbito de suas funções privativas (descritas no caput do mesmo artigo), entre as quais as funções de polícia judiciária (que incluem cumprimento de mandado de busca e apreensão e demais medidas cautelares) e a apuração de infrações penais.

Resta, portanto, expressamente previsto em Lei, que a adoção dos procedimentos de custódia (visando garantir a adequada coleta, preservação e integridade) é necessária não somente em relação a simples vestígios (conforme frequentemente alegado pelos órgãos de acusação, com base numa leitura limitada e restritiva do Art. 158-A CPP), mas também em relação a insumos, indícios e provas, e mais especificamente a “dados” e “informações”, definições que, conforme detalhado anteriormente, certamente abrangem qualquer tipo de evidência ou prova digital ou informática.

A nova Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis certamente reforça o fundamento das teses e interpretações desenvolvidas nos últimos anos a respeito da Lei 13.964/2019, nas partes em que trata das regras e procedimentos de custódia, no sentido que tais regras e procedimentos devem ser aplicados a qualquer tipo de vestígio, indício, evidência ou prova, de forma a garantir sempre a integridade e autenticidade dos elementos probatórios presentes no processo penal e, com isso, permitir a correta aplicação, entre outros, dos princípios da ampla defesa, contraditório e isonomia.

Pode-se agora afirmar que ficou positivada a exigência de que indícios e/ou provas digitais, de todo tipo, devam ser devidamente custodiadas a partir do momento de sua coleta ou aquisição por outros meios (a exemplo de apreensões, quebra de sigilos, entrega por colaboradores etc.), sendo indispensável, desde o início, a atuação de um perito oficial (aquele agente público concursado para tal cargo e lotado em um Instituto de Criminalística) na realização dos procedimentos de custódia e no sucessivo envio ao competente Instituto de Criminalística, tudo de acordo com quanto previsto, de forma genérica, pelos Arts. 158-A a 158-F CPP.

Aliás, rege o Art. 4º do Decreto Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942, que quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia. E sendo omisso o Código de Processo Penal quanto à cadeia de custódia de dados e informações que constituam indícios ou provas, a regra federal prevista no inciso V do artigo 6º da Lei 14.735/23 deverá ser analogicamente observada em todo ato de investigação pública praticado por qualquer polícia, observada a lógica-sistemática do ordenamento jurídico e, com isto, garantindo-se a qualidade e segurança dos dados e informações obtidas, de modo a assegurar a confiabilidade das fontes e a cadeia de custódia, garantindo a rastreabilidade e a confiabilidade dos resultados obtidos (1).

* Lorenzo Parodi é expert, pesquisador e perito assistente de defesa em questões relacionadas a provas digitais e falsificação de documentos, com atuação exclusiva em âmbito penal. Professor universitário e autor de livros e artigos.

* César Castellucci Lima é advogado criminalista, estudioso e atuante em nulidades processuais, habeas corpus e, há mais de uma década, provas digitais. Professor convidado na UNIVALI (pós-graduação).

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(1) Novo Código de Processo Penal: sugestões do Grupo de Trabalho de apoio à Comissão Especial do Código / Flaviane de Magalhães Barros Bolzan de Morais...[et al]. – Brasília: [s.n], 2020.



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