Anulação de provas digitais colhidas sem autorização judicial barra abusos

O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, anulou, na última semana, provas obtidas pelo Ministério Público do Paraná, em uma investigação criminal. Tais provas foram adquiridas junto a provedores de internet sem a devida autorização judicial para o congelamento de conteúdos armazenados na nuvem.

Para especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a decisão de Lewandowski protege a privacidade dos cidadãos (garantida pela Constituição) e é um precedente relevante para barrar a atuação desmedida do Ministério Público.

Limites ao MP
Segundo o criminalista Daniel Gerber, que representa uma das investigadas do caso concreto, é comum a prática do MP de oficiar os provedores de internet para pedir o congelamento de conteúdo, independentemente de decisão judicial.

Na visão do advogado, a decisão de Lewandowski "é um marco importantíssimo para qualquer investigação em andamento", pois vale como leading case "para qualquer caso no qual a defesa perceba que o MP tenha praticado o mesmo ato".

Adriano Mendes, diretor jurídico da Associação Brasileira de Provedores de Hospedagem (Abrahosting), e responsável pelas áreas de Digital e Proteção de Dados do escritório Assis e Mendes Advogados, vai na mesma direção do cenário exposto por Gerber.

"Ao procurar alargar os conceitos do Marco Civil, o MP induziu o Juízo a erro, incluindo conceitos técnicos que não fazem parte do que diz a lei", indica o advogado. De acordo com ele, a decisão serve como freio para que o Ministério Público não cometa mais abusos.

Contexto
Conforme o Marco Civil da Internet, o MP pode solicitar aos provedores a guarda de registros de conexão e acessos a aplicações de internet por mais tempo do que o determinado por lei. Porém, a disponibilização de tais dados depende de ordem judicial.

No caso concreto, além dos dados de conexão, o MP-PR também pediu a guarda de arquivos de mídia armazenados na nuvem, como fotos, mensagens, históricos de chamadas, registros de geolocalização etc. Em seguida, o órgão obteve autorização judicial para a quebra de sigilo do conteúdo armazenado.

Gerber explica que o MP não poderia solicitar esse congelamento dos conteúdos, pois eles estão relacionados à liberdade de expressão dos investigados.

"O congelamento, prévio ao acesso, não poderia existir. Em existindo, torna ilícito o acesso, que só foi possível na medida em que o material estava congelado", assinala. O advogado informa que a medida do MP-PR sequer foi requerida à Justiça.

Privacidade e abuso de poder
Gerber afirma que, caso a tese do MP prevalecesse, o conteúdo midiático de qualquer cidadão poderia ser congelado, sem autorização judicial, por qualquer promotor ou delegado de qualquer cidade.

O criminalista ressalta que o MP tinha a possibilidade de pedir o congelamento à Justiça. Nesse caso, o juiz analisaria os requisitos da pretensão. "É uma medida que nenhum prejuízo traria ao acusado, desde que deferida judicialmente", explica.

A intenção da decisão, segundo Gerber, não é "atrapalhar a investigação do MP", mas sim fazer com que o órgão "siga o caminho correto: peça ao juiz e, como qualquer litigante, espere a decisão judicial".

Ordem na casa
Gisele Truzzi, advogada especialista em Direito Digital e fundadora do escritório Truzzi Advogados, ressalta que a decisão afasta o risco grave das plataformas atenderem ordens ministeriais, sem passar pelo crivo do Judiciário.

"Esse conteúdo das informações trafegadas, que não deveria ter sido disponibilizado, viria à tona, violando assim a Constituição e o Marco Civil, por conta da violação à privacidade dos indivíduos", pontua.

Segundo ela, se a decisão fosse em sentido contrário, abriria um precedente negativo para outros órgãos públicos e administrativos (como as autoridades policiais) acessarem tais informações.

"É possível haver outras medidas, como ações de busca e apreensão e cautelares", aponta Mendes. "Mas, nestes casos, é necessária precisão cirúrgica ao delimitar o escopo e limites da intervenção estatal, para que não haja invasão da privacidade", complementa.

Discussão profunda
"Em jogo estão a democracia e os limites do Estado. De outra forma, em vez de vivermos na sociedade da informação, retroagiríamos e passaríamos a viver na sociedade da vigília e monitoramento do estado", afirma Adriano Mendes.

A reflexão do advogado diz respeito à possibilidade de se limitar a liberdade e a privacidade dos indivíduos em prol de medidas de segurança para fatos ainda não conhecidos: "Se houver um crime amanhã, podemos vasculhar toda a vida de uma pessoa para saber o que ela fez nos últimos anos e procurar uma justificativa para aumentar a pena de um crime que ainda não havia ocorrido?".

Ele lembra que diversas iniciativas e leis da Europa sobre acesso a informações já foram questionadas na Corte de Direitos Humanos e no Tribunal Europeu. Nas decisões, "sempre que há conflito entre o poder de polícia e os direitos fundamentais dos cidadãos, prevalecem os direitos individuais". A decisão de Lewandowski está alinhada a tais precedentes internacionais.

"De outra forma, as leis feitas para evitar crimes ou terrorismo, por exemplo, facilmente se transformam em armas estatais para o monitoramento perpétuo de pessoas, extrapolando os limites previstos na nossa Constituição e propósitos iniciais para as quais cada lei foi criada", conclui Mendes.



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