Afinal, a prova pericial pode ser contestada?

As ciências forenses são áreas de atuação que vêm sendo amplamente popularizadas nos últimos anos. Movida pelo slogan “a ciência contra o crime”, a atenção e os holofotes estão cada vez mais voltados para os peritos criminais. Sendo grande parte dessa popularização alavancada pelo seriado norte-americano CSI (Crime Scene Investigation), a sociedade passou a depositar uma confiança extremada na perícia criminal para “combater a impunidade e solucionar crimes”.

O efeito CSI contribui para a disseminação da cultura popular de um imaginário onde a investigação criminal, embebida em uma atmosfera científica, se apresenta sem as ambiguidades e incertezas do mundo real. Esse efeito é tão relevante que os concursos para o cargo de perito criminal têm sido cada vez mais concorridos, e a carreira tem se tornado o sonho de muitas pessoas.

A popularidade ganhou proporções tão elevadas que uma grande quantidade de seriados e notícias em telejornais passaram a ser reproduzidos. Foi em uma desses conteúdos de telejornal, que tratava especificamente do exame de DNA, que me deparei com a seguinte frase: “a prova pericial é uma prova praticamente incontestável”. Um sinalzinho vermelho apareceu em minha cabeça. “INCONTESTÁVEL? COMO ASSIM INCONTESTÁVEL!”. Segui almoçando e prestando atenção no que mais seria dito. Passei a refletir sobre o que acabara de escutar.

Ser incontestável definitivamente não combina com ciência. Nada que utilize metodologia científica para a sua determinação é incontestável. Isso é tão verdade que um dos princípios básicos da ciência é o princípio da verificação. Precisamos verificar para ver se aquele resultado realmente estava de acordo. Não só isso, junto à verificação temos o princípio da reprodutibilidade.

Mas o que é reprodutibilidade? É reproduzir um experimento, sob as mesmas condições e obter o mesmo resultado. Ou seja, se eu faço uma análise de DNA aqui no Brasil e se eu repito a análise na China, sob as mesmas condições, eu preciso que o resultado seja o mesmo para poder afirmar que a metodologia utilizada é reprodutível. Mas com o passar dos anos (e com o aumento do conhecimento e das tecnologias) os métodos utilizados avançam, alteram, mudam (e mutam), e muitas vezes o resultado é também diferente.

A ciência é dinâmica. A ciência é mutável. E por isso não é possível afirmar que algo é incontestável. Na ciência, praticamente tudo pode ser contestado e colocado à prova. É assim que o mundo evolui, caso contrário estaríamos estagnados ainda no século XVIII. É importante salientar que a prova pericial tem muito a contribuir para com a justiça criminal, entretanto, é de extrema importância que se tenha uma prova produzida sob bases sólidas e confiáveis.

Sendo assim, é necessário e importante que haja um questionamento acerca de como a pericia foi realizada. É preciso questionar a rastreabilidade do elemento probatório (a cadeia de custódia da prova científica), a comprovação da metodologia utilizada, a reprodutibilidade do resultado, etc. São procedimentos básicos que devem ser adotados pela prática pericial para que se tenha uma prova robusta.

A Rede Europeia de Institutos de Ciências Forenses (ENFSI – European Network of Forensic Science Institutes) lançou um relatório, em 2015, resultado de uma rede de estudos que iniciara em 2010, que possui uma gama de informações acerca de como deve ser produzida a prova pericial e de como deve ser dada a comunicação das descobertas científicas na corte. Dentre esses requisitos, temos o equilíbrio, a lógica, a robustez e a transparência. Essas são características essenciais de um bom laudo pericial e que não podem faltar no momento da produção da prova científica.

A falta de tais cuidados tem gerado uma série de erros científicos que impactam diretamente as decisões nos tribunais. A interessante série do Netflix, Provas Suspeitas, traz à tona diversos casos nos quais erros grosseiros e nitidamente contestáveis sobre a prova pericial ocorreram. Ainda pior é que, nos casos trazidos na série, a maioria dos acusados tiveram a sua liberdade privada por um tempo relativamente elevado.

O seriado traz uma denúncia aos erros das ciências forenses e reforça a ideia de que a prova científica não fornece evidências 100% confiáveis. Entretanto, cabe salientar que não é a ciência em si que está em causa. É como ela é mal utilizada por cientistas desonestos ou mal interpretada pela polícia e pelos tribunais.

Outro caso bastante famoso em que a prova científica foi chave para a condenação dos acusados foi o caso Amanda Knox e Raffaele Sollecitto. O casal Amanda e Raffaele foram condenados pelo homicídio de Meredith Kercher, a menina que dividia a casa com Amanda. A perícia foi realizada em diversas etapas, tendo uma coleta de vestígios na data do fato e uma segunda coleta aproximadamente 10 dias após, sem qualquer isolamento do local. As provas científicas produzidas não possuíam qualquer confiabilidade. Buscas foram realizadas até mesmo na casa de Raffaele.

O argumento mais concreto que levou à prisão do casal foi uma faca encontrada na casa de Raffaele que continha no cabo o DNA de Amanda e na lâmina o DNA de Meredith. Entretanto, posteriormente foi demonstrado que o exame de DNA realizado possuía muitos erros e, além disso, que inferências lógicas inadequadas foram realizadas na corte para convencer os jurados a condenar Amanda e Raffaelle. Felizmente anos depois foi demonstrada a inocência de ambos e, em 2013, Amanda lançou sua biografia intitulada Waiting to be Heard (Esperando para ser ouvida).

Um dos grandes problemas das ciências forenses é que, muitas vezes, os tribunais exigem respostas embebidas em certezas, o que a ciência geralmente não pode dar. Isto significa que não raramente há a necessidade de reinterpretar os resultados em termos mais simples, resultando em um falso aumento da fiabilidade da evidência.

Estes tipos de erros judiciários baseados na utilização abusiva de provas científicas resultam, em grande medida, do desejo social por uma justiça efetiva. É lógico que os operadores do direito e os cientistas forenses querem contribuir de maneira positiva para com a justiça e objetivam colaborar para com a comunidade.

Entretanto, não é possível deixar-se seduzir pelos apelos comunitários, com o consequente enfraquecimento dos requisitos necessários para a produção de uma prova pericial. Mesmo frente à grandes questionamentos públicos, e sabendo que a prova científica pode ser a “chave” para o processo, não se pode flexibilizar as bases científicas em prol de uma falsa impressão de justiça efetiva. Afinal, aceitar a flexibilização de princípios e pressupostos científicos em benefício de uma maior efetividade punitiva está longe de ser uma verdadeira justiça.

Por fim, é preciso haver uma conscientização prática das limitações das ciências forenses dentro do sistema de justiça. É preciso que juízes, promotores, advogados e até mesmo os peritos criminais questionem, tragam à tona as fragilidades da prova pericial e enalteçam tudo aquilo que pode auxiliar o aprimoramento das ciências forenses. Sem isso, não só continuará a haver erros judiciários, como também as ciências forenses poderão sofrer impactos negativos na sua essência, resultando em mais condenações e absolvições errôneas.



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